sábado, 18 de fevereiro de 2012

Da primeira novela a gente não esquece

Imagem do logo da novela Mania de Querer, levada ao ar pela TV Manchete,
de setembro de 1986 a março de 1987

Eu estava nervosa, uma pilha. Embora ninguém colocasse nestes termos, eu sabia perfeitamente que aquele seria um teste, não para passar de ano, mas para mudar o curso do rumo de minha vida, talvez provisório-definitivamente... Pela primeira vez eu ia escrever para a televisão com créditos na tela. Isto, se fosse aprovada. Óbvio.

Lá fomos nós: eu e meu medo. Tocamos a campainha, Silvan Paezzo nos atendeu, com olhar sisudo, convidando a entrar; finalmente, eu estava diante do "monstro sagrado" da minha juventude. Eu tinha lido todos os seus romances críticos, violentos, entre fascinada e horrorizada, e, até hoje, amo-os profundamente. Também foi dele a única novela que acompanhei, antes de escrever para a TV. Lembro-me de que Juca de Oliveira fazia greve de fome para sensibilizar a heroína, sua bem-amada, e, depois de conseguir tê-la em seus braços, com tanto sacrifício, ele morria no último capítulo, vítima de anemia. Só mesmo um grande autor seria capaz de uma ousada e perigosa reversão de expectativa desse tipo. Pois era diante dele que eu estava...

Em poucas palavras Silvan me colocou a par da situação: precisava de uma colaboradora para acabar "Mania de Querer" (1987), pois, por problemas internos, mais da metade do elenco tinha saído; precisava então refazer a sinopse, pois a novela era praticamente outra, precisava mudar até os rumos da trama, devido à debandada de atores. Perguntou-me se eu tinha experiência em TV e respondi que só fizera um Caso Verdade, comprado pela Globo, através de Henrique Martins, mas que o seriado não tinha sido exibido, por causa da censura prévia, o tema era muito forte (barriga de aluguel) para o horário da tarde. Ele foi durão: "– Saber que você escreve bem, eu sei, todos sabem; mas, como não li nenhum roteiro seu, preciso ver seu estilo. Me escreve aí a seguinte cena: uma mulher bonita está malhando, sozinha na academia, quando entra o ex-namorado, agarra-a e transa com ela à força". Pensei de imediato: ele tinha que começar logo com um estupro?...

Lembrei-me, porém, da "Época dos tristes", "Diário de um transviado", "Av. Copacabana 389 apt 801", "Santa Rosinha do Mangue", "Madame Satã" e achei que ele estava sendo coerente, seu pedido fazia sentido. Caprichei então, carreguei nas cores para ser tão realista e forte quanto o "Mestre". Quando acabei, ele leu, franziu o cenho e disse: – "Bom texto, mas muito pesado, principalmente partindo de uma mulher"... Senti uma incômoda sensação de "déjà vu", pois já ouvira muito a variante desta frase com relação a minha poesia. Só que, partindo dele, eu não esperava. Rapidamente levantei-me para ir embora, achando que todas as minhas chances tinham ido por cena abaixo, e lhe respondi, de forma um tanto brusca (pois queria sair dali o mais rápido possível):  – "Desculpe, Paezzo, eu não sabia que você queria um estupro leve". Levantei-me já pronta para sair e ele me disse em seu tom seco: – "Senta aí. "Está contratada".

Até hoje não sei se a decisão dele foi motivada pelo que escrevi ou pelo modo com que reagi. Sei que nos entendemos bem. No último dia de trabalho, levei seus livros e pedi que os autografasse. Os exemplares estavam velhos, amarelecidos, com a capa quase despencando, e cheios de anotação. Surpreso, ele folheou-os: "– Esses realmente foram muito lidos". Confirmei: – "Foram. Para mim, você é um dos melhores romancistas deste país". E complementei logo, já que eu sabia que ele não me perguntaria, mesmo que desejasse muito saber a resposta: – "Não lhe falei isto antes, porque eu não queria que minha admiração interferisse na nossa convivência profissional, nem que você pensasse que eu estava te elogiando por puxa-saquismo". Ele emocionou-se. Sei disso porque, pela primeira e única vez, ganhei dele um tímido sorriso. E este, eu tenho certeza, não foi pelo que eu lhe dissera, mas pela capacidade, que sempre tive, de surpreendê-lo.

                                         ***

Eu terminara esta crônica no parágrafo acima, pois nunca mais o vi depois daquele dia e sabia que ele falecera no ano 2000 – Mania de Querer fora seu último trabalho para a televisão. No entanto, há alguns anos, o filho dele entrou em contato comigo (eu o conheci quando ele tinha dois ou três anos de idade), através de uma rede social e me fez uma grande revelação: – "Meu pai falava que você tinha sido a melhor parceira de toda a carreira dele; ele tinha enorme admiração por você". Ao saber disso, pensei: se em vida sempre surpreendi Silvan, agora ele fizera o mesmo comigo – uma bela reversão de expectativa, que também me fez sorrir timidamente emocionada.

Leila Míccolis

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