Serres mostra que todo animal, pela urina, pelo excremento,
pelo sangue e pelo esperma – conforme o caso
– apropria-se de um local, terreno ou
território (que pode ser a territorialidade de um país ou de um corpo). Os
cães, os javalis e os gatos urinam para marcar sua passagem; as tribos
antropófagas, ao devorarem o inimigo, apossavam-se das qualidades dele – só os
guerreiros considerados heróis eram merecedores de tal honraria; nos rituais de
sacrifício religioso (ainda hoje) e nas guerras (tradicionais), a terra onde o
sacrificado ou o inimigo tomba torna-se sagrada para o vencedor, “legitima-o em
sua posse”.
Sujar, no sentido de macular, de marcar presença, pertence
ao animal – ao animal que também somos: “a sujeira e a limpeza delimitam
a propriedade”. Por
exemplo: em um hotel (ou motel), após a saída de um hóspede, o próximo a se
instalar exige roupas de cama limpas, para que possa apropriar-se e imprimir
suas marcas, quaisquer que sejam, mesmo que seja apenas um simples amarfanhado
nos lençóis; ninguém se enxuga, também, nas toalhas de outro, ou senta-se em
vaso sanitário que não tenha o aviso de que foi higienizado. Não que o escritor
preconize uma sociedade ascética – o excesso de limpeza é tão nocivo quanto o
seu contrário; não, a direção que ele segue é outra – ao final exporei a
proposta dele.
Serres tem o cuidado de observar a “Modernidade Líquida”
(outro livro incrível, do sociólogo Zygmunt Bauman), analisando a poluição suave
– ou seja, sutil – que mal percebemos de tanto que ela já está impregnada
em nosso cotidiano: a poluição da marca e da propaganda – imagem e som – que atravessa nosso caminho e entra pela nossa
casa. É belíssimo quando ele escreve que os outdoors
roubam-nos a paisagem e que o barulho de uma televisão ligada apropria-se da
convivência/fala entre as pessoas em um determinado local e até da intimidade
do silêncio. “Os
poluidores sujam o mundo para dele se apropriar”.
Trata-se de uma expansão desterritorializada, globalizada, sem fronteiras,
apropriação que nos faz ter “um
subjetivo tão poluído quanto o coletivo e o objetivo”.
O pensador francês diversifica e amplia o conceito de lixo
para inúmeras áreas, e em certo momento chega à indústria automobilística,
refletindo sobre suas estratégias e ciladas – tantas vezes imperceptíveis, embora
“expostas ao olhar de todos”: [tais setores] “dividem com o comprador a
propriedade. São ainda mais espertos, eles ficam com ela!”, pois um carro não
anuncia o nome nem o estilo de quem “pensou tê-lo comprado; (...) o que ele anuncia
é a marca do fabricante. Pagamos às montadoras o que compramos, mas, de certa
maneira, elas ficam com o que vendem. Permanecemos apenas locatários. Somos
roubados, mas em troca podemos, enfim, compreender a máxima famosa de Prudhon: ‘A propriedade é um roubo’!”. E o escritor finaliza, ironicamente, acrescentando
que, iludidos, ainda fazemos fila para multiplicar, no sentido de apoiar e
fomentar, a publicidade da qual somos vítimas.
O que Serres sugere é encontrarmos o que é próprio de uma
sociedade (propre também pode ser
traduzido do francês como limpo/limpa, e aqui a ambiguidade de sentidos é
importante)), a fim de descobrir o que realmente há nela depois que a
desvencilhamos de “tsunamis
de lixos” e de dejetos dos
mais variados tipos: industriais, tóxicos, culturais, publicitários,
identificadores sociais (carteiras, cartões de crédito, talões de cheques),
etc. e tal. Neste contexto atual, de “invadir
o mundo e ocupar sua extensão, corremos o risco de perder o caminho da
hominização”, já que vivenciamos
inclusive o perigo cada vez maior de sermos locatários do planeta, em vez de o
habitarmos de forma responsável, consciente e plena. Então, é o retorno a este
processo de hominização que o autor propõe, nem que seja apenas estando atentos
ao reconhecimento do lixo que acumulamos e da poluição diária que respiramos (e
que nos sufoca) de forma ininterrupta, em diversas áreas, para tentar
minimizá-los também dentro de nós. Difícil? Muito. Mas não de todo impossível.
Leila Míccolis