Falas muito de Marx,
de divisão de tarefas,de trabalhos de base,mas quando te levantasnem a cama fazes...
Leila MíccolisPoema do livo: "Sangue Cenográfico", Blocos, 1997, RJ
Linkagem do meu envolvimento com coisas, animais e pessoas ao imenso frame hipertextual do mundo.
Falas muito de Marx,
de divisão de tarefas,de trabalhos de base,mas quando te levantasnem a cama fazes...
Leila MíccolisPoema do livo: "Sangue Cenográfico", Blocos, 1997, RJ
Manuela era uma
empregada que mamãe não tinha, ou seja, uma abstração.
Sempre que ela queria
me chamar atenção por alguma coisa, dizia: – "Vai arrumar o quarto (ou
lavar o prato ou qualquer outra coisa no gênero) que a Manuela hoje não
veio". Eu já estava acostumada. No entanto, como falava na frente das
visitas, algumas não percebiam que se tratava de uma ironia da parte
dela.
Um dia, uma de suas
amigas lhe falou: – "Essa empregada falta mais do que trabalha, não sei
porque você ainda não a despediu". Só então mamãe se deu conta de que a
brincadeira estava sendo levada a sério e tratou de desfazer o mal-entendido,
contando que Manuela não era real, não existia, era uma piada, hoje falaríamos
fake...
Quando D. Rosalinda
soube que não havia Manuela nenhuma, ficou visivelmente consternada. Eu era
criança, mas percebi seus sentimentos pela expressão semelhante a que eu
própria tive quando soube que Papai Noel não existia. Na época, se meus
coleguinhas diziam que o "bom velhinho" era mentira, eu estufava o
peito e argumentava: – "Mamãe disse que ele existe e eu acredito, porque mamãe
não mente". Imagine então a surpresa quando encontrei os presentes que eu
pedira de Natal no guarda-roupa de meus pais (naquela época, naturalmente, eu
ainda não discernia a mentira da fantasia e da ficção; aliás, porque as
fronteiras entre este trio às vezes são bem difusas e tênues).
Pois foi a mesma cara
de decepção que eu vi estampada no rosto da visitante, abalada com a
informação. Na hora não entendi direito o porquê, mas hoje penso que talvez
minha mãe fosse a única das amigas de D. Rosalinda a ter uma empregada, ainda
por cima uma empregada faltosa, cuja patroa, em sua grande generosidade, a
mantinha há anos. Portanto, mexer em Manuela, era também, de certa forma, achar
que minha mãe era... digamos insincera, para não taxá-la de mentirosa – isto
abalaria a confiança que sentia pela grande amiga.
Manuela só ressurgiu
das cinzas, na minha vida, quando recebi de uma amiga, uma frase de Wilhelm
Stekel (quanto tempo não ouvia falar no discípulo de Freud – eu era sua
fervorosa admiradora nos tempos da minha Faculdade de Direito, época em que eu
lia mais psicanálise do que obras jurídicas.... Depois mudei para Reich, mas
esta é outra história). Escreveu Stekel: "Nem sempre a verdade é
fundamental para a nossa felicidade... Existem pessoas que morrem quando seus
olhos são abertos!" (O Pato Selvagem, de Ibsen, teatraliza este tema de
forma intensamente impactante).
Logo que terminei de
ler a frase do psiquiatra austríaco, D. Rosalinda me veio à cabeça, porque não
parou a dois parágrafos atrás a história dela com Manuela: foi tão forte para a
amiga de minha mãe a ideia da inexistência daquela empregada, a quem
provavelmente já imaginara com um corpo, gordo ou magro, e com uma história trágica
a lhe justificar tanta falta, que a visitante preferiu pensar que minha mãe
mentira sim, porém com a melhor das intenções, a de não "humilhá-la",
pois D. Rosalinda jamais poderia pensar em ter uma – professora sempre foi mal
remunerada em nosso país... Todos reverenciavam minha mãe por seu caráter
ilibado, por ser devotadíssima diretora de escola primária e mestra também em
delicadezas (na época dela – pasmem – as pessoas ainda tinham respeito umas
pelas outras, achávamos verdadeiramente que "ninguém era melhor do que
ninguém" e que bofetadas, só se dava... com luvas de pelica).
Provavelmente por isso, a visitante preferiu acreditar nesta versão criada por
ela mesma, por ser mais condizente e à altura da admiração nutrida por sua
colega de profissão. Foi aí que a expressão facial dela repentinamente
desanuviou-se, transformou-se, e, visivelmente, os sentimentos de frustração e
de insegurança que sentia deram lugar a um largo sorriso de imensa gratidão.
Manuela morreu com mamãe, mas, por tantas e tantas histórias a ela atribuídas, foi a mais forte das personagens fictícias a conviver comigo na infância. Depois de Papai Noel, é claro.
Em
1977, deixei a advocacia para me dedicar a outra “causa” – a literária –, cheia
de Ágape, chama do entusiasmo que até hoje não perdi, porque amo o que faço.
Logo no ano seguinte, em 1978, Wladyr Nader, da então heroica Revista Escrita
(SP), encomendou-me pela sua Editora Vertente, uma antologia com poetisas
"não-alinhadas", ou seja, escritoras que não estivessem satisfeitas
com a situação do mundo nem com a própria condição feminina. Reuni dez
"Mulheres da Vida", título polêmico, próprio para mulheres que
estavam na vida, questionando diversos aspectos individuais e sociais. O
título, severamente criticado por direitistas severos, por esquerdistas
tradicionalistas e até por centristas pseudomoralistas, foi muito bem compreendido
pelo público, que o interpretou corretamente, sem conotações depreciativas, como,
aliás, eu previra mesmo que assim fosse.
Lancei
a antologia no Rio de Janeiro e em várias capitais nordestinas, inclusive
Recife e Natal. Quando cheguei em Fortaleza, nenhuma livraria queria aceitar o
livro. Estávamos ainda sob o tacão da repressão e os livreiros receavam que a
polícia aparecesse e fizesse das suas costumeiras gentilezas: invadisse a loja
selvagemente, batesse nas pessoas, rasgasse obras, revirasse todas as
prateleiras, instalasse o pânico. Ninguém queria correr este risco, de questionar
e/ou desagradar a TFP (Tradição, Família e Propriedade). Para piorar, um
jornalista que ouviu cantar o galo, mas não sabia onde (no caso, não lera o
livro mas queria parecer bem informado), resolveu escrever que "Mulheres
da Vida" era um relato autobiográfico de dez prostitutas. Eitcha! Aí
danou-se tudo, fecharam-se de vez as portas de livrarias, pois todas eram muito
decentes, de boa reputação e de fino trato.
Liguei
para minha amiga Socorro Trindad, em Natal, uma das integrantes do livro (as
outras eram: Norma Bengell, Isabel Câmara, Maria Amélia Mello, eu, Eunice
Arruda, Aninha Franco, Glória Perez. Many Tabachinik e Réca Poletti). Relatei
minha dificuldade, e depois de pensar um pouco ela me sugeriu: "Bom, se
estão falando isto de nós e se as livrarias não aceitam comercializar o livro,
então lance-o num prostíbulo"... Gostei da ideia. Dirigi-me a uma casa que
achei simpática, nas imediações da Praça São Sebastião, e fui muito bem
recebida lá. Maria Loura deu-me todas as facilidades para a realização do meu
projeto, e, alguns dias depois, autografei o livro no Cabaré Estrela do Oriente.
O
que devia ser um lançamento de livro, transformou-se a ser algo diferente,
inusitado, com inimagináveis significados simbólicos – uma espécie de manifesto
cultural, um ato de veemente protesto, chamando a atenção da mídia para o
evento. Resultado: todos os jornais e televisões cobriram a "ousada
manifestação cultural" e nunca tive um lançamento fora do Rio de Janeiro
com tanta gente (inclusive foi lá que conheci Paulo Veras, saudoso parceiro
depois, no livro "Maus Antecedentes"). A intelectualidade em peso
esteve presente, e também inúmeros políticos, que hipocritamente "hipotecaram
sua solidariedade à nobre causa" literária... Vendi tanto livro que os
exemplares que levei não foram suficientes para todos os leitores; acabei vindo
com mais de cento e cinquenta encomendas pagas, mesmo os compradores sabendo
que só receberiam o seu exemplar quase quinze dias depois, quando eu retornasse
ao Rio de Janeiro.
O
mais bonito de tudo, porém, foi a atitude da dona do bordel. Ela estava muito
contente pelas altas personalidades em seu estabelecimento, é claro, mas estava
mais comovida ainda pelo livro em si, por escritoras de nome não terem tido
medo de serem "confundidas com elas". Eu raramente vi alguém pegar um
exemplar com tanta consideração, com tanto respeito. Também raramente vi alguém
ter uma interpretação tão simples e tão adequada de meus poemas. Era uma fase
em que eu, propositadamente, queria chocar os bem-comportados, sacudir-lhes os
ombros, e não media palavrões para agredir os puritanos. Pois ela, sem se
importar com as palavras "de baixo calão" (afinal, costumava ouvi-las
todas às noites justamente dos bem-comportados e dos puritanos), atravessou-as
com a maior naturalidade e se deteve no cerne da mensagem, que elas conheciam
na própria pele: a denúncia da desigualdade de gêneros, o farisaísmo, a
opressão, a repressão.
Maria
Loura estabeleceu as "medidas de exceção" que achou compatíveis com a
ocasião solene: a primeira delas foi a ordem expressa para que nenhuma de suas
meninas trabalhasse naquela noite, o que desmontou a imagem que tinham me dado,
de que elas fossem extremamente interesseiras e mercenárias. Aquelas, se
fossem, teriam aproveitado muito a chance de triplicarem os lucros pela grande
freguesia interessada nelas, já que o programa era insólito na cabeça dos
homens: compre um livro e leve uma menina... Una o útil ao agradável. Porém
todas disseram não. Trabalho, naquela noite, só de garçonetes, servindo as
mesas com bebidas e tira-gostos... Depois, Maria Loura continuou me surpreendendo
quando não aceitou o percentual da venda do livro, combinado anteriormente.
Alegou que o consumo de comes e bebes fora mais do que suficiente, lucrara com
isso e, principalmente, com a propaganda; por fim, no final da noite, ainda se
sentou com suas meninas e varou a madrugada me contando histórias, de alegria,
de dor, de decepção, de esperança, e todas me tocaram profundamente, mudando em
muito a imagem que eu tinha da "profissão mais antiga do mundo"....
Tenho
um carinho especial ao lembrar-me deste lançamento, e o considero como sendo o
melhor que já tive em minha vida.
Ao
pensar em Maria Loura e nas mulheres do Cabaré Estrela do Oriente muitas vezes
me veio à mente a letra de Chico Buarque de Hollanda, "Umas e
Outras", na qual uma freira e uma prostituta cruzam a mesma rua: "Mas toda santa madrugada/ quando uma
já sonhou com Deus/ e a outra, triste namorada,/ coitada, já deitou com os
seus,/ o acaso faz com que essas duas,/ que a sorte sempre separou,/ se cruzem
pela mesma rua/ olhando-se com a mesma dor"... Não se trata de uma
comparação, óbvio, porque nenhuma das escritoras era freira, nem “perdidas”;
mas, sem dúvida a conexão e a analogia aproximativa são visíveis: mesmo com
vidas tão diversas, porém com tantos sentimentos conflitantes em comum provenientes
de uma sociedade patriarcal desigual, manipuladora e autoritária, nos reconhecemos
plenamente naquela noite, naquela mesma rua, olhando-nos (poeticamente) com a
mesma dor e com a mesma com/paixão pelo mundo.
Foi criança, cresceu,
casou, cuidou da casa, seu marido morreu,
deixou seis filhos,
trabalhou para mantê-los,
perdeu quilos,
mas a recompensaram pelos danos:
agora por três dias, todo ano,
torna-se a Miss-Velhice lá do Asilo.
Leila MíccolisDo livro: "Sangue Cenográfico", Blocos, 1998, RJ
Leila Míccolis
Do livro Sangue Cenográfico, Ed. Blocos, 1997, RJLeila Míccolis
No começo era o Verboa Mélies e a Lumière
Em vez de se iluminar
o Homem insiste em brilhar.
Leila Míccolis
Dizem que o amor é cego,
não nego,
por isso te abro os olhos:
não tenho bens nem alqueires,
eu não sou flor que se cheire,
nem tão boa cozinheira,
(bem capaz que ainda me piches
por só comer sanduíches),
minha poesia é fuleira,
tenho idéias de jerico,
um cio meio impudico
como as cadelas e as gatas,
às vezes me torno chata
por me opor ao que comtemplo,
sei que sou péssimo exemplo,
por pouca coisa me grilo,
talvez por mim percas quilos,
eu não sei se valho a pena,
iguais a mim, há centenas,
desejo te ser sincera.
Mas no fundo o amor espera
que grudes qual carrapicho:
são tão grandes meu rabicho
e minha paixão por ti,
que não estão no gibi...
Ao te ver, viro pamonha,
sem ação, e sem vergonha
o meu ser inteiro goza.
Por isso, pra encurtar prosa,
do teu corpo, cada poro
eu adoro adoro adoro...
Leila Míccolis
Do livro: "Sangue Cenográfico", Blocos, 1997, RJ
EVOLUÇÃO
Meio cabra para escalar montanhas,
meio peixe para imergir profundezas.
Do mar abissal — ancestral
(limo, sal e correntezas) —
até à terra: empreitada
de bilênios de escalada,
e de íngremes conquistas,
estrada em busca da vista
que só do alto se avista...
Leila Míccolis
VI Encontro Nacional do Mulherio das Letras. Participação especial entre as Mulherageadas: Rui de Habeurim de 18 a 22 de Outubro...